terça-feira, 20 de outubro de 2015

A origem do que vestimos

Descrição para cegos: cartaz do documentário
mostra três pessoas (duas mulheres e um homem)
bem vestidas com sacolas de compras
cobrindo-lhes as cabeças. Em volta delas várias sacolas
de compras abarrotadas de roupas.
Você já parou para pensar de onde vêm as peças de roupa que usa, de que material são feitas ou quem as produziu? Normalmente nunca nos questionamos sobre essa origem. Porém, um fato pouco conhecido é que a chamada ‘indústria da moda’ é a 2ª mais poluente, perdendo apenas para a de petróleo. O documentário “The True Cost” faz revelações espantosas sobre cada etapa da cadeia produtiva da indústria de vestuário, dando destaque aos impactos ambiental e humanitário. Seu objetivo é fazer refletir sobre o consumismo e responder à pergunta: “quem realmente paga o preço pelas nossas roupas?”. 
Leia, a seguir, a crítica da jornalista Ana Carolina Rodarte, no seu blog Fashionbudz (Giovana Ferreira).

The True Cost: quem realmente paga o preço das suas roupas?



Ana Carolina Rodarte
A última sexta feira (29 de maio de 2015) trouxe a estreia mundial do documentário “True Cost” (Andrew Morgan, 2015), financiado pelo Kickstarter e exibido durante a última edição do Festival de Cannes. A convite da Bruna Miranda, representante do Fashion Revolution Brasil aqui em Belo Horizonte e autora da Review, pude conferir a exibição do filme no Museu das Minas e do Metal. Antes de apresentar um pouco das minhas impressões sobre o filme, quero trazer um ponto importante do Workshop Sociedade Consciente, promovido pelo Instituto Inhotim e concedido por Alexandre Alvarenga e Tatiana Machado: “toda a nossa reflexão propõe que você se insira em um ciclo de produção e consumo e entenda o seu papel no sistema”. O que você produz e consome tem impacto sobre uma sociedade, e é este consumo projetado sobre o todo que precisamos colocar como uma meta.

O preço das roupas baixou ao longo das duas últimas décadas. Você acha que nossos pais e avós compravam roupas como compramos hoje? É claro que há inúmeros fatores sociais e econômicos, e quando nossas avós já se esqueciam de como era ser moças, Mary Quant propunha ao mundo o sistema pret-a-porter. Fato é que, em contrapartida, os custos ambientais e humanos cresceram exorbitantemente. E se o senso comum tende a tratar a indústria da Moda como material de superfície, é preciso repetir: trata-se de uma das indústrias de maior capital humano no mundo. E uma das mais poluentes, perdendo apenas para a indústria petrolífera. É um sistema complexamente capilarizado e que deve ser repensado e questionado como tal. Não podemos mais fingir que seja “business as usual”, não após a tragédia do Rana Plaza, as denúncias de trabalho escravo em fornecedores da Zara. Felizmente, esta é uma missão cumprida pelo documentário de Andrew Morgan.

“True Cost é uma história sobre se vestir. É sobre as roupas que vestimos, as pessoas que as fazem, e o impacto que a indústria tem tido em nosso mundo.” (Andrew Morgan na apresentação do doc)

A carga dramática é necessária, já que o documentário não é feito somente para aqueles que já estão conscientes sobre o assunto. Ele tem uma estética agradável a diversos públicos, com um formato que permite o diálogo. Economistas, filósofos, estilistas, agricultores e trabalhadores são escutados com respeito, embora os depoimentos daqueles que pouco se importam sobre as atuais condições do sistema de moda fiquem no ar, dando espaço ao riso sarcástico do público. Por falar em momentos hilários, quase me levantei da cadeira para me juntar a Stephen Colbert durante a leitura dele sobre o delírio da “Black Friday”:
Arrisco dizer que a voz protagonista da narrativa seja a trabalhadora indiana e recentemente sindicalizada Shima. Shima trabalha em uma das confecções hostis de Bangladesh. A quantidade de reagentes químicos presentes na fábrica não permite que ela leve a filha pequena para o trabalho, e o salário de Shima não sustenta o pagamento de uma creche. Por isto, a filha dela é criada no povoado junto com os avós. A costureira só vê a própria filha duas vezes por ano. Quando Shima e os trabalhadores da confecção apresentaram uma lista de pedidos ao dono da fábrica para melhorar as condições do lugar, levaram surras de cadeira e tesouras das mãos da própria diretoria. Se o relato parece absurdo, é preciso lembrar: Shima é apenas uma entre centenas de milhares de trabalhadores em condições de semiescravidão em países subdesenvolvidos. Nestes lugares, os habitantes não têm oportunidades de escolha, e o argumento de que “poderiam estar em condições piores” é usado por grandes cadeias de fast fashion para manter as péssimas condições de trabalho. Como os países estão desesperados para que estas indústrias sejam implantadas, a luta por direitos trabalhistas não só é ignorada como banida a mãos de ferro, por vezes acarretando em mortes. No Camboja, as mulheres depoentes choram ao contar sobre a violência usada para reprimir os pedidos de um salário mínimo de U$160,00.
De acordo com o filme, até os anos 60, mais de 90% das roupas consumidas nos Estados Unidos eram produzidas lá. Hoje, a taxa é de apenas 3%. E embora a tragédia do Rana Plaza em abril de 2013 tenha escancarado ao mundo as péssimas condições de trabalho na manufatura destes produtos, aquele ano foi marcado como o mais lucrativo para a indústria fast fashion. A gravidade da questão só aumenta quando consideramos o grande impacto ambiental da produção de bens descartáveis: o cromo utilizado nos processos de tingimento de couro em Kampur e despejado sobre o solo e os lençóis freáticos têm causado anomalias na formação dos bebês, deficiências mentais e a perda de capacidades físicas. Mães esperam os próprios filhos morrerem, enquanto outras mulheres em Punjab ficam viúvas devido ao monopólio das sementes de Algodão Bte pela Monsanto, que acarretam em dívidas que os fazendeiros são incapazes de liquidar. Daí o surto de suicídios.
Por um senso de ética e alimentando nossas esperanças, “True Cost” também traz depoimentos daqueles que têm proposto uma transformação da cadeia, como a estilista Stella McCartney, o fundador da Patagonia Yvon Chouinard e a CEO e fundadora da People Tree, Safia Minney. O trabalho equitativo (“fair trade”) proposto por Minney em comunidades pobres traz brilho ao olhar das trabalhadoras, e é instigante ver como o sistema justo pode ser lucrativo e transformador. Uma observação pequenina: fiquei surpresa ao ver que a CEO de uma marca como a People Tree seja uma pessoa tão simples, que transite entre trabalhadores humildes e profissionais altamente graduados.
Apesar de o diretor Andrew Morgan afirmar que não deseja que as pessoas parem de comprar na Zara, mas repensem o próprio consumo e tenham cuidado com as próprias roupas, creio que a raiva e a indignação sejam inevitáveis. É impossível não querer assumir a posição da produtora executiva do documentário e diretora criativa da Consultoria Eco Age, Livia Firth, durante a Copenhagen Fashion Summit de 2014, quando ela questiona Helena Helmersson, ‘cabeça’ de Sustentabilidade da H&M, sobre os ditos “salários básicos para viver” em Bangladesh (minuto 20’45”):





“Penso que a situação hoje está tão bagunçada que estamos todos nesta, de algum modo. Nós fomos manipulados para pensar que temos de consumir de uma maneira tão rápida. Mas como consumidores, precisamos nos lembrar de quão poderosos somos. Cada vez que compramos algo, nós votamos, e se a marca ainda quer um negócio que seja lucrativo em 15 ou 20 anos, eles precisam endereçar o impacto ambiental e a justiça social. Porque isto tende a piorar.”

Livia toca no X da questão. A plateia chorava durante a sessão do filme porque se confrontava com a culpa. Somos também responsáveis pela questão, porque é fácil viver distraído. “Mentimos para nós mesmos em um senso de auto preservação, porque não sustentamos o peso de nossos papeis. A transformação do sujeito para promoção de uma sociedade consciente necessita de uma estrutura maior, emocional e imperativa. É claro que é mais fácil comprar quando não sabemos a origem de nossas roupas e mantendo nossos bolsos contentes, mas você percebe como isto serve como um consolo para você?” Percebe o impacto de seu consumo em um mundo globalizado, onde somos desligados dos sistemas de produção? “Trata-se de ter um pouco mais de respeito pelo que consumimos, de não tratarmos estes produtos como descartáveis.” Respeito pela mão de obra, pelos recursos que tiramos da Terra, pelo trabalho de quem projetou o que você usa. Não podemos sustentar um esquema que produza 52 coleções de roupas ao ano.
“True Cost” é um relato urgente, e que vale ser conferido. Anseio ansiosamente pela presença dele em nossas colunas de Moda nacionais, para que nossos amigos jornalistas se lembrem da obrigação que têm em cobrir pautas de direitos humanos – e isto está em nosso Código de Ética. O documentário não está sendo exibido nas salas de cinema, mas você pode pedir uma cópia física ou digital por apenas dez dólares no site oficial do filme. Assista o trailer abaixo:



  Site do filme: http://truecostmovie.com/

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